quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A rapariga cem por cento perfeita - Haruki Murakami

Ao contrário do Pereira,eu preocupo-me em por as coisas em português.

Numa bela manhã de Abril, cruzei-me com a rapariga cem por cento perfeita ao passar por uma rua menos movimentada do cosmopolita bairro de Harajuku, no centro de Tóquio.

Para dizer a verdade, ela não era assim tão bonita quanto isso, nem se pode dizer que fosse chamativa. A roupa que trazia vestida não tinha nada de especial. A parte de trás dos cabelos, junto à nuca, ainda apresentava marcas de quem acabara de se levantar da cama. Também não era propriamente nova - devia ter os seus trinta anos, daí que talvez já não fosse correcto chamar-lhe rapariga. Mesmo assim, ainda nos separavam cinquenta metros e já eu tinha percebido que era ela a miúda cem por cento perfeita para mim. A partir do momento em que a vi, o meu coração começou a vibrar como se estivesse a haver um tremor de terra e a minha boca ficou seca como a areia de um deserto.


É provável que cada um tenho o seu tipo particular de rapariga. Alguns gostam delas estreitas de anca, por exemplo, com olhos grandes ou com mãos elegantes, outros ainda sentem-se atraídos, vá lá uma pessoa saber porquê, por aquelas jovens que saboreiam vagarosamente a comida à refeição. Também eu tenho as minhas preferências. No restaurante, acontece-me por vezes ficar fascinado a olhar para o nariz da rapariga sentada na mesa ao lado.

O certo é que ninguém pode dizer a que corresponde a tal rapariga cem por cento perfeita. Por mais que eu me sinta atraído por narizes, a verdade é que nem sequer me lembro do nariz dela. Mais, nem sequer me ponho a questão de saber se tinha nariz. Tudo o que recordo é que não era uma grande beleza. Estranho.

- Ontem na rua passei pela rapariga cem por cento perfeita – digo a um rapaz amigo.

- Ai sim? – responde-me ele. – Era muito bonita?

- Nem por isso.

- O teu género, nesse caso?

- Não tenho certeza. Esqueci-me de tudo o que lhe diz respeito, não te sei dizer qual era o formato dos seus olhos, se tinha seios pequenos ou grandes...

- Estranho.

- Podes crer.

- E então? – quis saber o meu interlocutor com um ar sério. – Falaste com ela? Seguiste-a?

- Não, cruzámo-nos e foi tudo.

Ela caminhava vinda de leste em direcção a oeste, e eu seguia o meu caminho de oeste para leste. Estamos a falar de uma manhã de Abril mesmo muito agradável.


Confesso que gostaria de ter chegado à fala com ela. Nem que fosse por uma meia hora, só para ficar a saber qualquer coisa a seu respeito, para dizer quem eu era. E, sobretudo, a fim de explicar as complexas singularidades do destino, que haviam feito com que nos cruzássemos numa rua lateral de Harajuku numa bela manhã de Abril de 1981. De certeza que semelhante encontro só poderia ocultar envolventes segredos, à imagem do mecanismo de um relógio antigo construído na época em que o mundo ainda vivia em paz.

Depois de termos conversado um bocado, poderíamos almoçar qualquer lado, iríamos ver um filme de Woody Allen, de caminho passaríamos pelo bar de um hotel para tomar uma bebida. Com sorte, quem sabe se não acabaríamos na cama juntos.


Semelhante hipótese não deixou de bater à porta do meu coração, confesso.

Entretanto, a distância entre nós os dois ficara reduzida a uma quinzena de metros.

- Bom dia. Posso perguntar-lhe se estaria disposta a conceder-me meia hora para termos uma pequena conversa?

Ridículo. O mais certo era ela pensar que tinha pela frente algum representante de uma companhia de seguros.

- Desculpe, mas por acaso sabe dizer-me se existe alguma lavandaria aberta toda a noite aqui perto?

Pior a emenda do que o soneto. Para começar, nem sequer a roupa suja trazia comigo. Quem é que ia acreditar numa deixa daquelas?

Talvez fosse melhor ir pela verdade.

- Bom dia. Deixe-me dizer-lhe que é a rapariga cem por cento perfeita para mim.

Não, ela não teria acreditado em mim. Ou então, mesmo que tivesse, havia grandes hipóteses de não querer falar comigo. “Talvez eu seja a rapariga cem por cento perfeita para si, mas, desculpe que lhe diga, não vejo em si o homem perfeito.” Poderia muito bem acontecer. E nesse caso o mais provável era eu sentir-me totalmente perdido, ao ponto de nunca recuperar do choque. Tenho trinta e dois anos; tudo somado, é isso que significa envelhecer.


Passámos à frente de uma loja de flores. Um leve sopro de ar tépido acariciou-me a pele. O asfalto do passeio estava húmido, e até mim chegou o perfume das rosas. Não há maneira de me decidir a falar com ela. Trazia uma camisola branca vestida, e, na mão esquerda, um sobrescrito branco ao qual faltava apenas o selo. Quer então dizer que ela tinha escrito a alguém. Mais, que passara a noite a escrever aquela carta, a julgar pelo olhar terrivelmente ensonado. Quem sabe se aquele envelope não encerraria todos os seus segredos?


Dei mais uns passos e, quando me voltei, já ela tinha desaparecido no meio da multidão.

Passado este tempo, naturalmente que sei o que lhe deveria ter dito ao abordá-la. De qualquer modo, levando em conta o tamanho do meu discurso, demasiado longo, não teria funcionado como deve ser. As ideias que me vêm à cabeça revelam-se sempre pouco práticas.

Em todo o caso, o meu discurso poderia ter começado por “era uma vez” e terminado com “uma história muito triste, não acha?”.



Era uma vez um rapaz e uma rapariga que viviam num país distante. O rapaz tinha dezoito anos, a rapariga dezasseis. Não se podia dizer que ele fosse especialmente bonito, e com ela a mesma história. Eram apenas dois jovens solitários, à imagem e semelhança de tantos outros. Com a diferença de que cada um deles acreditava piamente que, algures no mundo, existia o rapaz e rapariga cem por cento perfeitos para eles. Sim, acreditavam num milagre. E o milagre tornou-se realidade.

Um dia, caminhando pela estrada, encontraram-se os dois a meio caminho.

- Espantoso – disse ele. – Tenho andado à tua procura desde que me lembro. Podes não acreditar, mas tu és a rapariga cem por cento perfeita para mim.

- E tu, o rapaz cem por cento perfeito para mim – observou ela. – És exactamente como te imaginava, em tudo. Tenho a impressão de estar a viver um sonho.

Sentaram-se os dois num banco do parque e ficaram horas infinitas a trocar confidências. Já não estavam sozinhos no mundo. Tinham encontrado parceiro, a companhia perfeita, e isso era uma coisa maravilhosa. Uma espécie de milagre que atingia proporções cósmicas.


Porém, enquanto estavam sentados, à conversa, uma pequena, para não dizer pequeníssima, dúvida instalou-se nos seus corações. Seria de esperar que um sonho se tornasse realidade assim tão facilmente?

- Vamos pôr-nos à prova – sugeriu o jovem à rapariga a dado momento, aproveitando uma pausa na conversa. – Se é verdade que somos realmente cem por cento perfeitos um para o outro, de certeza que um dia nos encontraremos de novo em qualquer parte. E quando nos voltarmos a ver, saberemos então que somos feitos um para o outro, na perfeição, e casaremos logo. Estás de acordo?

- Sim, de acordo – respondeu ela – é exactamente isso que devemos fazer.

E foi nesses termos que os dois se separaram e foi cada uma para seu lado; ela partiu em direcção a oriente e ele rumou ao ocidente.


Aquele teste, contudo, anunciava-se absolutamente inútil, e eles nunca o deveriam ter levado por diante. Na medida em que se revelavam de facto perfeitos um para o outro, o seu encontro já tinha sido um verdadeiro milagre. Jovens como eram, porém, não estavam em condições de compreender a situação, e as ondas indiferentes do destino fizeram com que eles se afastassem irremediavelmente.

Certo Inverno, quer o rapaz quer a rapariga apanharam uma terrível gripe que na altura fazia muitas vítimas, e passaram várias semanas entre a vida e a morte. Uma vez recuperados da maleita, verificaram que tinham perdido a memória dos primeiros anos. Quando acordaram, tinham a cabeça mais vazia do que a conta bancária de D. H. Lawrence nos seus tempos de juventude.


Tratando-se de dois jovens inteligentes e corajosos, contudo, mostraram-se capazes de readquirir uma nova consciência e sentimentos novos, o que lhes permitiu recuperarem o lugar a que tinham direito enquanto membros da sociedade. Graças aos deuses, voltaram, quer um quer outro, a ser capazes de apanhar o metro e de mudar de linha, de se dirigirem aos correios a fim de enviarem uma carta registada. E até souberam o que era amar de novo, num ou outro caso com setenta e cinco por cento ou até mesmo oitenta e cinco por cento de êxito.

O tempo passou com uma rapidez impressionante. Entretanto, o rapaz já completara trinta e duas primaveras e a rapariga tinha trinta anos.


Numa bonita manhã de Abril, o rapaz caminhava pelas ruas da cidade, vindo de oeste e em direcção a leste, à procura de um sítio onde pudesse beber um café para começar bem o dia, ao mesmo tempo que a rapariga percorria a rua, mas no sentido de oeste para leste, com o propósito de ir aos correios enviar uma carta urgente. Cruzaram-se a meio caminho. Por um breve momento, o brilho fugaz das recordações perdidas iluminou os seus corações. Tanto um como o outro sentiram o mesmo.

“É a rapariga cem por cento perfeita para mim”, pensou ele.

“É o rapaz cem por cento perfeito para mim”, pensou ela.

O fulgor das suas memórias, todavia, era demasiado ténue, da mesma forma que os pensamentos não possuíam a clareza de catorze anos antes. Passaram ao lado um do outro sem trocar palavra, e desapareceram por entre a multidão em direcções opostas, para sempre.

Uma história triste, não lhe parece?


Sim, era isso mesmo que eu lhe devia ter dito.

3 comentários:

  1. O que postei é uma tradução,o teu é uma tradução de uma tradução MUAHAHAHAHAHAH

    1-0

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  2. Ye pois,meu continua a estar mais bonito e eu preocupo-me em usar a nossa bela língua ;P

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  3. Já dizia o nosso amigo REDE... "tabaibos ou a vida"

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